terça-feira, 29 de setembro de 2015

DIA BRANCO


Dia Branco


(Geraldo Azevedo/Renato Rocha) 


Se você vier
Pro que der e vier
Comigo...

Eu lhe prometo o sol
Se hoje o sol sair
Ou a chuva...

Se a chuva cair
Se você vier
Até onde a gente chegar
Numa praça
Na beira do mar
Num pedaço de qualquer lugar...

Nesse dia branco
Se branco ele for
Esse tanto
Esse canto de amor
Oh! oh! oh...

Se você quiser e vier
Pro que der e vier
Comigo

Se você vier
Pro que der e vier
Comigo...

Eu lhe prometo o sol
Se hoje o sol sair
Ou a chuva...
Se a chuva cair

Se você vier
Até onde a gente chegar
Numa praça
Na beira do mar
Num pedaço de qualquer lugar...

E nesse dia branco
Se branco ele for
Esse canto
Esse tão grande amor
Grande amor...

Se você quiser e vier
Pro que der e vier
Comigo

Comigo, comigo.

A construção do sentido, ou seja, a elaboração de uma estrutura de significados que, entrelaçados, conferem à letra um valor lírico e uma “mensagem poética”, passa pela organização dos planos sintático, semântico e fonético, com a influência, é claro, dos elementos morfológicos elegidos pelos autores. Comento, a partir daqui, o plano sintático e o semântico, cuja importância para uma leitura mais minuciosa da letra é grande.

No plano sintático, percebe-se uma desestruturação significativa na dupla presença de orações subordinadas adverbiais condicionais “se você vier” e “se hoje o sol sair” vinculadas à oração principal “eu lhe prometo o sol”, o que cria uma incompatibilidade semântica. O que quer dizer isso? Que, ao mesmo tempo em que se constrói uma promessa calcada numa condição dependente de uma outra pessoa (se você vier, eu lhe prometo o sol) se processa uma desconstrução do valor semântico dessa promessa, remetendo-a para uma terceira, no caso, o próprio sol. Assim, prometer o sol “se hoje o sol sair” diminui o poder de realização da promessa ou condiciona sua realização aos desígnios solares. Também o trecho “esse tanto esse canto de amor” revela o caos sintático ao se situar, aparentemente, de forma solta no corpo do poema. A que oração pertencem esses termos? A leitura de um hipérbato, por exemplo, em que se reorganizaria a ordem do trecho final, justificaria a compreensão de uma estrutura possível: “se você quiser esse tanto, esse canto de amor e vier pro que der e vier comigo”. É possível, contudo, uma leitura diferente, que una “Se esse tanto, esse canto de amor branco ele for”, o que mostra o uso do hipérbato como forma de criar uma ambiguidade. O uso do plano sintático como forma de gerar ambiguidade é um dos fatores que agregam valor poético à letra.

Também a desorganização causada pela ausência de pontuação é indício da predominância da desestruturação de sentido própria, inclusive, de produções líricas modernas e pós-modernas. Um poema anterior ao século XX poderia ser lido como um texto coeso, sintaticamente articulado. A partir da Modernidade, como sabemos, recursos inventivos extraíram do poema a “obrigatoriedade” de coesão sintática e de coerência semântica. A pontuação, ou melhor, a ausência de pontuação foi e é, nesse âmbito, um dos recursos mais utilizados.

No plano semântico, incongruências como “Eu lhe prometo o sol se hoje o sol sair” “ou a chuva se a chuva cair”, remetendo o valor semântico de “promessa” ao esvaziamento, porque tudo se promete de forma condicional; a gradação “numa praça na beira do mar num pedaço de qualquer lugar”, sugerindo a ampliação e indefinição do espaço (“onde”) em que se viveria o amor; ou, ainda, “nesse dia branco se branco ele for”, destacando a suspensão da adjetivação inicial (“branco” “se branco for”), promovem a desarticulação da relação sêmica entre “intenção” e “condição”, signos básicos que encontrei na estrutura do texto. Explicando melhor, no plano semântico percebe-se que dois fatores sustentam a vivência amorosa que se propõe: um é a intenção de viver o amor, outro é a condição ou as condições em que ele será vivido.

Como comentei acima, em termos de articulação sêmica, ou seja, na relação entre significados estruturais do poema, pode-se perceber a presença redundante de trechos que sugerem uma condição ¾ “se você vier”, “pro que der e vier” (condição implícita), “se hoje o sol sair”, “se a chuva cair”, “se branco ele for” ¾ e outros que traduzem uma intenção ¾ “eu te prometo”, “até onde a gente chegar”, “comigo”. A condição, inserida no âmbito do subjuntivo e relacionada à terceira pessoa (você, sol, chuva, branco), constitui um plano de possibilidades. Já a intenção, relacionada a uma primeira pessoa (“eu”) que se manifesta no tempo presente, indica um plano de disponibilidade. A expressão “canto de amor”, ambígua por poder se referir a espaço físico ou a sentimento, define o ponto em que os dois planos se cruzam ou poderiam se cruzar, ou seja, “se você quiser”, indicando um movimento possível do “outro” em direção ao “eu” sugere a idéia de que o canto de amor solicita uma experiência compartilhada.

Uma leitura inicial relaciona as condições, como se viu, à terceira pessoa. Também o movimento de ir ao encontro do outro parece estar vinculado ao desejo, ou seja, à transformação de uma condição em uma ação (“se”/”vier”). Contudo, visto ser a condição implícita “pro que der e vier comigo” uma colocação ditada pelo sujeito da enunciação (o ser que assume a voz do poema é que propõe ao outro uma condição), pode-se também recolher o registro de uma ação pressuposta desse “eu”, que se revela disposto (intenção) a agir (“até onde a gente chegar”) desde que a condição se cumpra (“se você vier”). Logo, o “pro que der e vier” acaba se fazendo uma condição decisiva para a consolidação de uma relação amorosa que, nesse caso, deverá ser ditada pela total aceitação de quaisquer outras condições impostas pela exterioridade (“se hoje o sol sair”, “se a chuva cair”, “se branco ele for”), daí a decorrente inutilidade de qualquer “promessa”.

O título da canção (“Dia branco”) reúne os dois campos semânticos. “Dia” é o espaço concreto do presente (“hoje”) e “branco” o referente da potência significativa aberta de um “dia” não delimitado por um adjetivo específico como seria o caso de “ensolarado” ou “chuvoso”. O “dia branco”, por isso, ratifica a mensagem implícita de que o amor a ser vivido deve estar aberto e ser resistente a qualquer condição que se imponha, inclusive a condição de o dia não ser branco.

A canção propõe um “canto de amor” que só se constituirá como tal “se” o outro “vier pro que der e vier”. Intenção e condição, portanto, se integradas, concretizarão a experiência amorosa. No entanto, a permanência do “se” no campo das possibilidades, não define a inscrição desse amor no plano da realização, ficando a disponibilidade da voz que ama sob suspensão. A subjetividade, portanto, não se realiza a partir de si, mas se torna dependente do outro, cuja predisposição não aparece definida no poema, remetendo o sentido da relação sêmica condição/disposição para o âmbito da hipótese.

“Dia branco”, assim, pode ser lido como uma metáfora do amor incondicional, que, todavia (e paradoxalmente), se sustenta numa condição, o “pro que der e vier”. Como uma carta de intenções amorosas, o “dia branco” só possui um texto: o “pro que der vier” e uma assinatura: “comigo”. A partir daí, a predisposição para o amor se abre a qualquer possibilidade. Todavia, a presença marcante do “se” indica haver a necessidade de uma resposta. Qual virá? Ou a resposta é essa que nós damos quando ouvimos a canção e com ela nos emocionamos, assinando também essa “carta de intenções” e deixando ver que, no imaginário coletivo, o amor carrega consigo, de fato, um vivo desejo de cumplicidade e eternidade?

(Christina Ramalho),

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